Não Perca o Foco

O FOCO NARRATIVO


Quando se fala em narrativa ficcional, imediatamente associa-se o termo ao relato de uma história em que atuam personagens em um espaço e tempo determinados.
Embora essa definição simplifique bastante o resultado final de uma narrativa, ela é um bom ponto de partida para o estudo dos elementos que identificaremos em qualquer uma delas, trabalhamos em maior ou menor grau pelos escritores. São eles: foco narrativo, personagem, enredo, espaço e tempo.
O primeiro dos elementos constitutivos da narrativa a ser estudado é o foco narrativo. Toda narrativa tem um narrador (quem conta a história), que estabelece um ponto de vista a partir do qual a história vai ser contada (foco narrativo). Observe a tira:




O elefante da tirinha desenha o homem de acordo com o ponto de vista a partir do qual o vê (de cima). É por isso que, no desenho, o aspecto mais destacado é o nariz do homem. O ponto de vista em uma narrativa constitui a perspectiva a partir da qual o narrador conta a história.

FOCOS NARRATIVOS EM 1ª PESSOA


No trecho a seguir, acompanhamos uma personagem que tenta desesperadamente dormir, mas não consegue. Note que muitos verbos e pronomes são flexionados na primeira pessoa do singular, porque quem conta os acontecimentos é a mesma pessoa que participa deles.

Insônia


“Considerando que oito horas de sono são o ideal para uma pessoa, quase oito horas de sono devem ser quase o ideal. É lógico. Então, se eu conseguir dormir até a meia-noite e acordar amanhã às sete e vinte, está ótimo.
Ou quase ótimo. Vou acordar feliz, bem-disposta, capaz, praticamente recuperada. Se eu dormir até meia-noite. Ainda tenho cinco minutos. Cinco minutos é tempo de sobra pra uma pessoa pegar no sono, quer ver? Vou pegar no sono em cinco minutos. Boa noite. Estou quase dormindo. Quase. Dormi. Não dormi? Acho que não. Mas vou dormir agora. Senão os pensamentos começam a entrar na minha cabeça e aí, minha filha, nunca mais. Um pensamento puxa outro, que puxa outro, parece até que pensamento tem corda. O negócio é não deixar entrar o primeiro, ta vendo?


FALCÃO, Adriana. In: Veja/RJ, 16 out. 2002.


Se o narrador em primeira pessoa é a personagem principal, porque a história a ser contada gira em torno dela – como ocorre no conto cujo inicio analisamos -, temos um narrador-protagonista.
É possível, no entanto, que um narrador em primeira pessoa seja uma personagem secundária de sua própria narrativa. Isso ocorre quando ele nos conta uma história que “testemunhou”, mas que está centrada em outra personagem.

FOCOS NARRATIVOS EM 3ª PESSOA


Se o foco narrativo não for em primeira pessoa, mas sim na terceira pessoa, o narrador é onisciente. Um narrador onisciente nos apresenta uma visão mais distanciada da narrativa; ele oferece, também, uma série de informações para o leitor que o narrador em primeira pessoa, por ser particularizado, não pode fornecer.

A onisciência do narrador significa que ele, em principio, “conhece tudo”. Por esse motivo é comum, em narrativas na terceira pessoa, sermos informados sobre o estado de espírito das personagens, seus sentimentos, intenções e pensamentos. Veja um exemplo de foco narrativo em terceira pessoa:
“ Luísa espreguiçou-se. Que seca ter de se ir vestir! Desejaria estar numa banheira de mármore cor-de-rosa, em água tépida, perfumada, e adormecer! Ou numa rede de seda, com as janelas cerradas, embalar-se, ouvindo música! Sacudiu a chinelinha: esteve a olhar muito amorosamente o seu pé pequeno, branco como leite, com veias azuis, pensando numa infinidade de coisinhas: - em meias de seda que queria comprar, no farnel que faria a Jorge para a jornada, em três guardanapos que a lavadeira perdera...”


QUEIRÓS, Eça de. O primo Basílio. Porto: Lello & Irmãos, s.d.

O narrador nos informa dos pensamentos de Luísa, de seu desejo de encontrar-se em uma banheira de água morna... Apenas a onisciência possibilita esse tipo de revelação acerca das personagens.



“Aquele foi um verão diferente, único. Um verão que começou antes da hora e que desde o principio deixou estabelecido que se estenderia pelo tempo, atropelando calendários, previsões e memórias.
A casa erguia-se branca no meio da encosta, rodeada de grandes amendoeiras.
A encosta descia no rumo do mar, suave no principio, abrupta no final. Na casa, a rotina estabeleceu-se com os primeiros dias de sol, quando a força do verão mostrou-se com toda a sua impertinência.
Todos os dias, pouco depois das oito da manhã, o motorista saía no carro branco e ia até a aldeia, seguindo veloz pelos quatro quilômetros da estrada que corria sobre as rochas, beirando o mar. Voltava sempre às nove trazendo pão, a correspondência que recolhia no correio e, algumas vezes, um pacote de laranjas. Quarta-feira era o dia em que a cozinheira gorda, negra e tranqüila ia com ele. Sentava-se no banco da frente, ao seu lado, e viajava em silencio, suspirando e olhando o mar. Na volta, trazia duas grandes sacolas de verduras e frutas e um peixe embrulhado em um papel claro. Nesse dia, o automóvel branco demorava um pouco mais para voltar.
A casa era silenciosa e tinha grandes janelões e duas varandas enormes que se abriam para o mar.”


NEPOMUCENO, Eric. As três estações. In: Coisas do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.



Notamos que, por meio da narração, a cena vai sendo apresentada ao leitor em todos os seus detalhes, como informações sobre o tempo (era verão), o cenário (a ação se passa em uma casa de praia), as personagens (o motorista, a cozinheira). Deve-se notar, também, que somos levados a acompanhar os acontecimentos rotineiros na vida dessas pessoas, quase como se estivéssemos assistindo a uma cena que se desenrola diante de nossos olhos.
Por mais minuciosa que seja a apresentação feita pelo narrador-observador, ela não nos informa sobre alguns elementos essenciais para que possamos compreender o que se passa. Poderíamos perguntar, por exemplo, o que sentem aquelas pessoas que circulam pela casa de praia, ou em que pensa a cozinheira quando olha para o mar e suspira. Essa é a característica de um narrador que apenas apresenta o que observa.

Pesquisa: Márcia Grião

Nenhum comentário:

Postar um comentário